Os Gasparettos são – em carne e osso – uma tradicional família de descendentes italianos entre as tantas que povoam bairros de classe média de São Paulo. Habitam três casas distribuídas em um só terreno no bairro do Ipiranga, na Zona Sul da cidade, reúnem-se para longos almoços de fim de semana, falam gesticulando e tocam um negócio familiar. Mas a vida desta família pouco tem a ver com o dia-a-dia dos 176 milhões de brasileiros. Num domingo desses, por exemplo, a matriarca, Zibia, estava descansando na sala após o almoço, enquanto Irineu dedilhava um violão. Outro filho, Luiz, levantou-se e disse: ‘Ele chegou. Vou pintar’. Rumou para outro cômodo, onde o esperavam tintas e uma tela em branco. ‘Ele’ não era um colega do ramo das artes, nem um amigo que serviria de modelo, nem um professor de artes plásticas.
Tratava-se do espírito de um gênio da pintura que estaria vindo diretamente do Além e iria ajudá-lo a manusear os pincéis. Minutos depois, Luiz voltou à sala e disse ao irmão: ‘Apareceu no ateliê um baixinho, troncudo. Ele está dizendo que fez aquela música, ‘Chão de Estrelas”. Animado, Irineu nem vacilou: ‘É Orestes Barbosa!’ Luiz voltou para sua oficina e avisou ao espectro do sambista: ele procurara o médium errado. ‘Se é música, o senhor se enganou de sala.’
Cenas assim são corriqueiras na família de Zibia Gasparetto. Aos 76 anos, ela é a grande dama da literatura transcendental no Brasil. Há dez anos freqüenta a lista dos mais vendidos no ramo dos livros esotéricos, religiosos e de auto-ajuda. Suas 24 obras, ditadas por espíritos dispostos a enviar ensinamentos aos vivos, venderam, no conjunto, mais de 5 milhões de exemplares. A façanha só foi superada pelo maior médium brasileiro, Chico Xavier, com seus 25 milhões, e por seu sucessor no mercado editorial, o baiano Divaldo Pereira Franco, que chegou à marca dos 7,5 milhões.
Nesse mundo paralelo, o que diferencia Zibia é a inauguração de um novo gênero. Ela montou uma linha de produção de livros sem pretensões literárias, com toques de auto-ajuda e linguagem adaptada para quem não é iniciado no espiritismo. Conta histórias recheadas de diálogos, fala como uma tia sempre pronta a dar conselhos que ajudam a encarar dificuldades – e atrai chusmas de leitores de classe média. Com seu neo-espiritismo, Zibia vende mais que o humorista Ziraldo, cujos livros são indicados na rede escolar. E empata com Luis Fernando Verissimo. Na retaguarda desses romances açucarados em que a morte não é barreira para o amor verdadeiro, ela conta com uma família que – ao contrário dos espíritas puros – não tem pudores de ganhar dinheiro com a mediunidade. Entre psicografias, cursos e diálogos insólitos com fantasmas, os Gasparettos montaram um pequeno império.
Luiz Gasparetto faz programas na TV e no rádio, às vezes incorporado pelo espírito do Preto-Velho Calunga, faz shows, escreve livros de auto-ajuda e pinta quadros inspirados pelos grandes mestres, como o atribuído a Leonardo da Vinci.
O clã do outro mundo é formado por quatro filhos de Zibia com o empresário Aldo Gasparetto. Todos são médiuns gabaritados, daqueles com alta capacidade de receber pessoas desencarnadas, como se prefere denominar os mortos nessa área. ‘Pela informação que tive dos espíritos, eu e meus filhos nos reunimos antes de nascer para fazer um trabalho juntos’, explica ela. O filho mais famoso, Luiz, de 53 anos, fez carreira internacional emprestando as mãos – e às vezes os pés – a gênios falecidos. Entre eles estariam nomes como Van Gogh e Picasso. Com um índice de produtividade de fazer inveja a qualquer artista vivo ou morto, já pintou mais de 30 mil telas. Chegou ao recorde pessoal de concluir seis obras em apenas 15 minutos. Irineu, de 50 anos, é uma compilação ambulante da MPB. Incorpora várias gerações de sambistas, de Catulo da Paixão Cearense a Pixinguinha. Os outros dois filhos, Pedro, de 55 anos, e Silvana, de 45, vêem e ouvem espectros conversadores, mas preferem se dedicar à administração dos negócios. O mais velho toca um curtume herdado do pai em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo. A filha é o braço direito da mãe na editora. ‘É uma família meio doida’, admite Zibia. ‘É comum ficarmos conversando em casa sobre o que disse esse ou aquele espírito.’
O domingo em que o espírito de Orestes Barbosa teria passeado pelo casarão da família Gasparetto, por exemplo, nem seria lembrado não fosse ele ter atravessado o samba e se enganado de sala. Mesmo avisado do engano, o atrapalhado Orestes Barbosa deixou uns versos com o médium errado e se foi. Antes de terminar o domingo, ainda apareceu por ali Ataulfo Alves. ‘Ele trouxe a melodia. Houve uma parceria mediúnica’, garante Irineu. Não foi a primeira vez que Irineu diz ter composto músicas com medalhões da MPB. Em 1997, lançou um CD em parceria com várias almas ilustres.
Obras psicografadas são mais antigas que Allan Kardec, o fundador da doutrina. Mas, no Brasil, os Gasparettos inovam com um marketing espírita que inclui lançamentos de livros, CDs e fitas cassete, programas de rádio e TV, palestras e cursos. A matriarca fez uma opção clara pelo mercado a partir de 1995, quando se afastou da militância religiosa. Deixou o comando do centro espírita Os Caminheiros, que desenvolvia obras sociais na periferia de São Paulo e atendia mais de 1.000 pessoas por dia, para dedicar-se a uma editora própria, a Vida & Consciência, que se tornou uma das maiores do ramo no país. Só com a venda dos livros pode faturar R$ 17 milhões por ano, sem contar a gráfica, que presta serviço a editoras, como Siciliano e Saraiva.
Nada demais para quem vive num mundo capitalista, no qual acumular fortuna não é um sacrilégio, mas um dom. Para o espiritismo puro, porém, usar os ‘seres de luz’ com objetivo pecuniário equivale a usar um morto para ser muito vivo. Teoricamente, o escritor espírita é apenas um instrumento entre quem foi e quem fica, sem mérito nem pelo estilo nem pelo conteúdo da obra. Por isso, dizem os espíritas, ganhar dinheiro com esse tipo de livro é moralmente questionável. Chico Xavier nunca embolsou um tostão e o baiano Divaldo Pereira Franco doa o que ganha a instituições de caridade, vivendo da aposentadoria de R$ 980 como funcionário público. ‘Espíritas têm de trabalhar com o suor do rosto para viver’, defende Franco. ‘Os bons espíritos mandam mensagens e não cobram nada. Se nos beneficiarmos desse dom, estaremos cometendo um crime.’
Para escapar das críticas sem perder os adeptos de sua linguagem simples, com tramas de suspense, Zibia define-se hoje como ‘espírita independente’. Transferiu a responsabilidade da opção pela livre iniciativa para os mortos. ‘Os espíritos me aconselharam a dedicar-me à divulgação das idéias’, justifica. ‘Eles me diziam: ‘Você precisa abrir uma gráfica’.’ Pelo jeito, Adam Smith, Henry Ford e John Pierpoint Morgan devem ser algumas dessas almas inquietas, pois a estratégia deu certo. Zibia conquistou as grandes livrarias e as listas dos mais vendidos. Derrubou as muralhas da doutrina e abriu um filão no mercado que não pára de crescer. Na última Bienal do Livro em São Paulo, em 2002, por exemplo, uma pesquisa do Sindicato Nacional dos Editores mostrou que, entre 1.700 visitantes, os livros espíritas ficaram em segundo lugar como área de interesse. Só perderam para a categoria romance.
Zibia, enfim, captou bem as vibrações do mercado ao investir numa espécie de romance do Além. Perdeu fãs mais rigorosos, como a bancária Maria Bacchiega, que se tornou espírita depois de ler uma de suas obras antigas. ‘Entrei na doutrina porque achava os livros dela muito bonitos, mas depois ela fugiu dessa linha e parei de comprá-los’, critica. As baixas, no entanto, são compensadas pelo número crescente de novos leitores que, sem crença definida, buscam na possibilidade da vida depois da morte não um preceito filosófico, mas um alento para as dores deste mundo. ‘Ela hoje pega mais leve nas causas espíritas que os outros autores, tem um estilo mais romanceado. Não sou espírita e gostei de seu lançamento mais recente, Tudo Tem Seu Preço’, diz a webmaster Vera Moraes.
O filho Luiz foi o guia espiritual da família Gasparetto na transição da caridade para o business. Foi por influência dele que a família tratou de trocar a ortodoxia da doutrina pela individualidade da auto-ajuda – e chamou isso de ‘metafísica’. Ele também deixou de falar em mediunidade. Prefere ‘sexto sentido’. No passado, Luiz já emprestou as cordas vocais ao impressionista francês Toulouse-Lautrec para que desse uma entrevista na TV Cultura. Mas hoje ele dá pouca atenção a espíritos de mestres como Leonardo da Vinci porque está dividido entre atividades mais rentáveis: cursos para platéias que chegam a mais de 3 mil pessoas e um programa na Rádio Mundial, em São Paulo. Contratado pela diretora Miriam Morato, é o apresentador mais importante da emissora. Em breve estreará na TV CBS, em UHF, e na NET. ‘Se eu tenho dom, por que não vou ganhar dinheiro com isso?’, desafia. ‘O espiritismo é estruturado em cima do assistencialismo, que é um veneno. Achavam Chico Xavier lindo porque se sacrificava. Podem me odiar, mas ninguém vai se aproveitar de mim. Hoje não tenho religião.’
Luiz chega a ganhar R$ 40 mil em um único dia de curso e sonha em ser um pop star da auto-ajuda. Compra suas roupas em Los Angeles, onde mantém uma casa, gosta de novidades gastronômicas, só anda com motorista e aposta na imagem de self made-man. Está longe de ter a fama da mãe, mas tem se esforçado para ser seu herdeiro. Fiel aos preceitos divulgados em seus livros e cursos – ‘O que conta é a idéia que a pessoa faz dela própria’ -, difunde um excelente conceito de si mesmo. ‘Sou a pessoa mais interessante que conheço’, garante.
Longe das críticas, a família Gasparetto vive em alegre turbulência. Além dos cinco membros de carne e osso, há os respectivos espíritos que freqüentam o corpo de cada um. Curiosamente, eles respeitam o horário comercial para fazer contato, como convém a seres de luz evoluídos. Lucius, por exemplo, que ditou 18 dos 24 livros de dona Zibia, visita sua anfitriã de segunda a quinta-feira e foi um membro do parlamento inglês – uma das poucas revelações que deixou escapar sobre suas muitas encarnações. Trata-se de um espírito de temperamento reservado, que não gosta de falar do passado. Zibia, mulher de educação antiga, filha de um cafeicultor da região de Campinas que quebrou na crise de 1929, prefere não se meter na vida – opa! – do amigo celestial. ‘É feio ficar perguntando, não gosto de constrangê-los.’
Luiz tem como visitante mais assíduo de seu corpo esculpido por horas de balé e biodança um caboclo mineiro chamado Calunga. Sem dentes, descalço e vestido de linho bege, ele é ‘um fantasma meigo e violentamente sábio’. Em meio à série Calunga, composta de dez fitas cassete com orientações espirituais, estão títulos como Tá Tudo Bão e Sentado no Bem. Calunga incorpora em Luiz durante os programas de rádio e apresenta aos ouvintes ‘as mais belas e elevadas verdades da vida’. A maior das revelações ‘na perspectiva dos desencarnados’ é: ‘O importante é ter paz no coração’.
Irineu, o músico, é mais tímido. A família descobriu que ele era intérprete mediúnico dos mestres falecidos em uma festa. De repente, ele mudou de fisionomia e murmurou canções. Logo fazia shows incorporando estrelas do além-samba. ‘E eu nem curtia música brasileira. Gostava era de Beatles e Elvis’, diz. Os gringos até apareceram para ditar alguns versos. Mas não deu muito certo. ‘Meu inglês é muito ruim’, desculpa-se o médium. Nessas ocasiões, ele recebe a ajuda do irmão, poliglota. Numa delas, apareceu John Lennon. ‘Levei um susto, o cara estava em meu quarto’, conta Luiz. Dia desses apareceu Dolores Duran, a musa que, aos 29 anos, chegou em casa ao amanhecer e disse à empregada: ‘Estou cansada. Vou dormir até morrer’. Mulher de palavra, teria restado à cantora mandar suas composições por Irineu. O médium anotou os versos e mostrou ao irmão. ‘Se essa é Dolores, piorou muito’, disse Luiz, em um dos raros momentos de crítica às almas.
Até 1950, a família era tradicional, pacata mesmo. Aldo Gasparetto, um ex-seminarista, era representante comercial. Zibia, que trabalhou num banco até se casar, era católica distraída. A vida de classe média transcorria sem sobressaltos, dois filhos crescendo com saúde, quando Zibia saltou da cama e saiu andando num passo de homem, discursando em alemão. O marido demonstrou possuir nervos titânicos. Nem correu. Apenas chamou a vizinha, espírita. Depois de uma oração, Zibia voltou ao normal. ‘Aldo ficou preocupado porque eu não era dada a chiliques’, conta. ‘Aparentemente era uma pessoa normal, equilibrada.’ Em busca de respostas, os Gasparettos mergulharam na doutrina espírita. Zibia estudou até a 4a série, mas lia desde os 5 anos. Fã de Agatha Christie, escrevia contos policiais. Acabou dedicando-se a outros mistérios pelas mãos de Lucius, que se revelou um espectro fiel, mas lento. Levou cinco anos para ditar o primeiro livro, O Amor Venceu. Hoje, com as novas necessidades do mercado editorial, aumentou a produtividade para cerca de um romance por ano. Aldo Gasparetto morreu do coração, em 1980. Os filhos dizem que aparece para dar palpites sobre a administração dos bens. Como nos romances de Zibia, a morte não é barreira para o amor. Nem para os negócios.
Alguns comentários com seus respectivos autores:
”O espiritismo é estruturado em cima do assistencialismo, que é um veneno. Achavam Chico Xavier lindo porque se sacrificava. Podem me odiar, mas ninguém vai se aproveitar de mim. Hoje não tenho religião”
LUIZ GASPARETTO
”Os bons espíritos não cobram nada e são eles os autores. Se nós nos beneficiarmos, estaremos cometendo um crime”
DIVALDO PEREIRA FRANCO, apontado como o sucessor de Chico Xavier e já vendeu 7,5 milhões de livros. Vive de sua aposentadoria
‘Os espíritos me aconselharam a dedicar-me à divulgação das idéias. Eles me mandaram abrir uma gráfica e deixar outras pessoas assumirem as obras sociais”
ZIBIA GASPARETTO, justificando o abandono do centro espírita para se dedicar aos negócios
”Buda era simplesmente um professor de auto-ajuda. Fazia a mesma coisa que eu faço. Se eu tenho o dom, por que não posso ganhar dinheiro com isso?”
LUIZ GASPARETTO, médium que ganha R$ 40 mil em um único dia de curso
Fonte: http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EDG57510-5990,00-A+FAMILIA+DO+ALEM.html