Com crenças de raízes indígenas, africanas e envolvendo vida em outros planetas, doutrina opta por discrição para alcançar 50 templos no estado
É tarde de uma quarta-feira, dia de movimento fraco, e algumas dezenas de pessoas se sentam ao lado direito da porta de entrada de um grande templo, logo após uma elipse metálica, com cerca de quatro metros de comprimento, com um desenho estilizado e colorido da cabeça de um jaguar. São pacientes. Após algumas ladeiras e quilômetros na Cidade Tabajara, chegaram – por problemas familiares, de saúde, financeiros, espirituais, existenciais, ou qualquer outro que os afligem – ao Olinda do Amanhecer, templo precursor do Vale do Amanhecer no Nordeste, fundado em 1975 e, até hoje, um dos mais grandiosos entre os quase 50 erguidos em Pernambuco. E saem sem promessas. Apenas com conselhos dados por pretos velhos, entidades de matriz africana, que, incorporadas aos médiuns da casa, procuram dar clareza para quem, na aflição, enxerga tudo turvo e nublado.
Alguns trajam capas e os que foram iniciados recentemente vestem roupas mais discretas, batas brancas com alguns detalhes em cores. “As vestes têm por objetivo tirar as diferenças de fora. Todos são iguais. As diferenças sociais são despidas, ficando evidente apenas a atuação dentro da doutrina”, explica Zilcio Sales, presidente do templo, ressaltando que as pequenas diferenças nas roupas é também a identificação do patamar em que o médium está, uma espécie de patente.
Criada em 1959, em Goiás, a doutrina tem como base a viúva, caminhoneira, mãe de quatro filhos e falecida em 1985. Ela teria descoberto, a contragosto, ter a capacidade de comunicar-se com espíritos, podendo, inclusive, sair do próprio corpo e vivenciar outras dimensões. Na crença do Vale do Amanhecer, ela foi escolhida por Pai Seta Branca, espírito mentor da doutrina, para aplicar todos os ensinamentos existentes hoje, tornando-se mãe clarividente e mentora espiritual dos atuais praticantes da vertente religiosa.
Números:
– 677 templos espalhados pelo Brasil
– 47 estão sediados em Pernambuco
– 1975 foi o ano da inauguração da religião no estado, em Olinda
– 10 mil médiuns já teriam passado pelo local desde sua fundação
– 20 falanges missionárias fazem parte da doutrina, cada uma regida por uma entidade
Viúva, mãe de quatro filhos e motorista de caminhão, sem religião alguma, Neiva Chaves Zelaya era uma mulher comum. Aos 33 anos, porém, passou a ter diversas experiências paranormais e extrassensoriais para as quais não encontrava explicações. Entrou para o espiritismo, mas, sem resolver seus problemas, se isolou. Esclareceu sua situação ao seguir as orientações dos espíritos e iniciar a implantação do Vale do Amanhecer.
“O evangelho do Vale prega amor, tolerância e humildade, acreditando na evolução espiritual pela reencarnação. Os seus rituais, coloridos e elaborados, consistem no auxílio gratuito dos médiuns e seus espíritos evoluídos aos pacientes em busca de equilíbrio e cura. Percebe-se, então, que essa religiosidade contém elementos de várias outras religiões: além do cristianismo, kardecismo, umbanda e candomblé, esoterismo e ‘nova era’”, aponta o doutor em teologia e professor da Universidade Católica de Pernambuco Gilbraz Aragão.
Os membros do Vale, porém, apesar de reconhecerem as semelhanças, tratam a doutrina como algo que segue o seu próprio caminho. “Apesar de semelhanças, não somos kardecistas, nem de umbanda, o que nos une é a ciência que originou todas as religiões”, resume Zilcio Sales, adjunto parlo em Olinda e filho de Zilda e Inácio Sales, matriarca e patriarca da doutrina em Pernambuco.
Mediunidade globalizada
Pai Seta Branca aparece nas imagens e estátuas presentes no templo como um caboclo, mas, na crença de seus seguidores, em outras vidas já teria sido faraó e até São Francisco de Assis. Os adeptos do Vale do Amanhecer acreditam em Deus e em Jesus, mas não são cristãos – se dizem “crísticos”. Creem que Cristo foi um homem que deixou exemplos que devem ser seguidos, mesmo que não seja o salvador.
“O nosso mentor não aceita aquele Jesus sangrando na cruz. A humanidade se sensibiliza com o sofrimento. Aqui a gente não se sensibiliza com o Jesus sangrando, mas com os exemplos que ele deixou, que é o mais importante”, afirma Zilcio Sales, presidente do Olinda do Amanhecer.
O Vale do Amanhecer foge do convencional. Desde a complexidade de suas crenças, passando pelas vestes e pelos hábitos costumeiros de outras religiões. Não impõe aos seus seguidores dogmas, livros sagrados, documentos escritos, revelações ou profetas.
Tenta excluir de seus preceitos qualquer crença imposta por fé e medo. A manutenção dos templos se dá por contribuições dos médiuns – dinheiro ou presentes dos pacientes são rechaçados.
Pacientes estes que, no futuro, podem tornar-se médiuns e ajudar novos pacientes.
“Cremos que todos aqui já passamos pelo Egito, Roma, Grécia em outras encarnações. Fomos preparados no passado e temos uma herança transcendental, precisamos nos redimir dos erros cometidos ajudando o próximo”, resume Zilcio.
Relação interplanetária
O Vale do Amanhecer crê em um sistema planetário chamado Capela, onde há uma civilização que interfere na vida da Terra. De acordo com Tia Neiva, eles atuam ajudando os humanos, tendo, por exemplo, construído as pirâmides do Egito.
Os capelinos teriam sido vistos por ela em um dos seus “desdobramentos” (quando o espírito saía do corpo físico). Esses seres teriam entre três e quatro metros de altura e a capacidade de vir à Terra encarnar nos médiuns como mentores, fazendo uma parada antes na Lua, onde haveria uma base de desintegração que os deixa em estado etéreo.
Há a crença de que um planeta gigantesco se aproximará da Terra e muitos espíritos serão recolhidos por ele. Os eventos que culminarão com isso tiveram início em 1984 e só reencarnaram na Terra espíritos redimidos, sem maldade.
Uma aposta para fugir da depressão
Selma Machado tinha 31 anos de idade quando perdeu seu único irmão. Até completar 42, conviveu com a depressão. Resistiu o quanto pode até entender que o que sentia seria fruto de mediunidade. “Eu vivia com pensamentos compulsivos. A mediunidade quando atua é uma doença muito séria. Se eu não tivesse aqui, há uma grande chance de eu estar em um manicômio”, afirma esbanjando certeza. Talvez motivada pelas experiências que teve desde a infância.
Com sete anos de idade, garante ter visto por várias vezes o espírito de um homem tentando levá-la. Com o tempo, sentia uma enorme negatividade. “Bastava alguém me dizer algo que eu não gostasse e aquilo ficava na minha cabeça, não pensava em outra coisa. Depois eu entendi que não era eu pensando”, lembra. Na doutrina do Amanhecer, encontrou um caminho. Hoje, aos 62, é mestra da casa, após todos os passos iniciáticos realizados. Passou a conviver de forma pacífica com os vultos que vez por outra enxerga e com as presenças que sente. “Aqui, aprendi a controlar a minha mediunidade. Pra mim, isso aqui é um pedacinho céu, salvou a minha vida”.
Para Geiza Ferreira Gomes, o caminho foi semelhante. A depressão não dava trégua. Passava seus dias entre o hábito de costurar e a compulsão do choro, fora de controle. A enfermeira do Hospital da Restauração é, junto ao marido, responsável pelo templo da doutrina em Itapissuma, na Região Metropolitana do Recife. A mudança ocorreu há nove anos, após conhecer o Vale do Amanhecer. Antes disso, era católica, sequer admitia o espiritismo, menos ainda outras religiões menos difundidas.
“Mas aprendi que não são todos que nascem para serem católicos ou evangélicos. E a gente não pode negar quando recebemos um chamado. Deus é ecumênico. Ele não faz distinção de religião”.
Na doutrina, aprendeu que cada pessoa tem uma transcendência, que acarreta karmas espirituais, assimilados no auxílio ao próximo. “Quando cheguei aqui, só fazia chorar, agora enxergo todas as cores que antes não via. Jesus diz que ‘na casa do meu pai há muitas moradas’ e é verdade. Uns se encontram na igreja, outros no terreiro e outros no Vale do Amanhecer”.
Uma questão de energia
Tudo é energia. E os trabalhos são realizados por meio da sua manipulação através da mediunidade, capaz de contatar dois planos distintos. O ectoplasma é o responsável pelo contato, muitas vezes produzindo efeitos sem o controle das pessoas. Os que têm conhecimento dessa energia são os médiuns. Um novato pode tornar-se médium, sendo treinado para desenvolver sua mediunidade – quanto mais prática, mais aprimorado fica.